Conta-me histórias

Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. E se um conto for o somatório de pontos de vista diferentes sobre a mesma história? TiC e TaC são irmãos que partilham pontos de vista diferentes sobre um mundo que nem sempre se conjuga...

domingo, abril 30, 2006

Capítulo IV


O dia amanheceu claro e radioso.
Por entre os hiatos do pequeno postigo entravam teimosamente os primeiros raios de luz...
Sôfrega, a pele do pequeno humanóide, sorvia os fotões que lhe lambiam o corpo... Deu por si a acordar... De dentro de casa não se ouvia um som...
Contemplou por um instante os movimentos suaves e espumosos do oceano e achou-se a levantar. Atrás de si, um pequeno amontoado de tecidos de tonalidade incógnita. Agora, os raios solares incidiam-lhe directamente na face. Protegeu os olhos com uma das mãos. Imediatamente o seu rosto abandonou o grato torpor, observando horrorizado o membro que se erguera a contra-luz...

Elevou as duas mãos como que numa prece impossível e contemplou o sangue coagulado que revestia parte das palmas e costas das mãos. Sentiu o líquido seco onde estivera deitado.
- O que é que eu fiz? - gritou silenciosamente.
Sem pensar mais duas vezes abandonou desajeitadamente o pequeno cubículo ao lado da casa onde se instalara e correu para a praia deserta.

quinta-feira, março 16, 2006

Capítulo III



O fogo da lareira parecia já não ter força suficiente para arder como há poucas horas atrás quando tinha sido alimentado. Foi como se a raiva que inicialmente o fazia estalar se estivesse a extinguir a uma velocidade estonteante. Enegrecendo as paredes do interior da casa, o que fazia corar o granito exterior que a sustentava, ainda que coberto de musgo e calejado do fenómeno da erosão.
Nisto, um ruído surdo e seco chamou a atenção de TiC que voltou a cabeça novamente na direcção da janela.
“Ouviste isto?” – perguntou à irmã franzindo o sobrolho direito, algo que fazia quando queria prestar uma atenção suplementar a certas coisas.
“Ouvi o quê?” - não obtendo qualquer tipo de resposta TaC repetiu a pergunta elevando ligeiramente o tom de voz. – “Ouvi o quê?”
Era escusado. Com um simples encolher de ombros a atenção do irmão tornou a centrar-se no mirrado coquinho, esfarelado em cima da mesa.
Não era nenhuma novidade, nem algo a que ela já não estivesse habituada mas hoje, particularmente, a mania que TiC tinha de não responder às perguntas como se os outros tivessem a obrigação de ler o que lhe ia na alma estilo X-Men, irritou-a moderadamente. Estando demasiado cansada para iniciar uma discussão parva por uma das suas inúmeras manias enervantes limitou-se a suspirar ironicamente. Um arrepio gélido percorreu-lhe a espinha e envolveu-se com força no casaco de malha preto, como quem tenta colocar um sinal de proibição à entrada de frio no organismo.
“É de mim ou ‘tá a arrefecer?”
“Não é de ti. A lareira está a apagar-se.” – respondeu-lhe TiC secamente continuando a ingerir bolinhos sem sequer a olhar.
“Já ias lá tratar do assunto...” – brincou a jovem em jeito de pedido.
“Eu? Porquê? Vai lá tu! Se bem me lembro tu é que és perita em deitar lenha na fogueira!” – Enquanto o disse lançou-lhe um olhar provocador e magoado. Este atravessou a mesa como uma flecha encontrando uma surpresa instantânea nos olhos da irmã.
“Que queres dizer com isso?”
Mais uma vez silêncio. Mas este bastante diferente dos anteriores. A pergunta era, claro, retórica. Ela sabia bem o que ele queria dizer. E aquela expressão dizia-lhe mais que dez desenhos...

terça-feira, março 14, 2006

Capítulo II

Um vulto, pés titubeantes, marcas deixadas na areia molhada da praia. Movia-se incerto mas rápido. Parecia não ter um objectivo perfeitamente definido. Apenas o olhar, como se aproximássemos a câmara, fixo e vazio no cimo da escosta.

O som suave do mar misturava-se com as passadas rápidas e o murmúrio da areia sob pés descalços. A chuva fraca chegava para pintalgar os óculos do vulto que agora se encontrava na base da encosta.
À sua frente desenhava-se uma torpe escada de madeira, ondulando e mingando à medida que percorria a rocha ascendente. No topo, apenas uma luz.
Com um movimento rápido da cabeça certificou-se de que não era seguido e iniciou a subida.
Aos poucos a respiração tornou-se mais ofegante e o objectivo mais próximo.
...
De forma eficiente e com movimentos, agora lestos, aproximou-se da casa. Assim que atingiu a base da janela de onde provinha a luz encostou-se, gozando por momentos a segurança alcançada.
Podiam-se ouvir claramente os risos vindos do interior. Uma conversa indistinguível inundava a divisão, única da casa iluminada. Uma música de fundo alimentava e aquecia o ambiente.
O vulto, que silenciosamente se erguera, observava agora os dois irmãos.

Capítulo I


TiC olhou lá para fora e sentiu uma longa e pesada tristeza que lhe percorreu o corpo todo. Uma expressão física do que lhe ia na alma. Na cozinha, TaC retirara do forno bolinhos de coco que fazia para entreter o pensamento e as mãos com algo mecânico que não exigisse grande esforço, principalmente mental.
A manhã tinha sido esgotante. Ambos vestidos de preto, sentavam-se agora à mesa comendo lentamente em silêncio. Apesar de tudo o silêncio nunca fora algo desconfortável entre eles e muitas vezes dava espaço aos olhares e gestos para dizer algumas palavras que não requeriam ouvidos.
“Isto não são coquinhos…” – resmungou TiC, interrompendo a conversa não verbal que se instalara.
“Não têm farinha.” – explicou TaC simplesmente.
“Não interessa, não são coquinhos! O objectivo dos coquinhos é exactamente o oposto deste.” – Com um movimento apenas levantou o bolo que se esfarelou de imediato sobre a tolha da mesa.
“Isso é porque não têm farinha…” – insistiu TaC, que já se acostumara a estas observações do irmão.
“Já sei! Para a próxima experimenta fazer os coquinhos sem...sei lá... coco! e vamos ver no que dá. Que tal? Se calhar dá um efeito ainda mais fixe...”
Riram-se. Pela primeira vez em todo o dia.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Prefácio


Chovia...